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Série Hannibal – Roteiros da 1ª Temporada

Hannibal: Análise de Roteiros

A série televisiva Hannibal, capitaneada pelo showrunner Bryan Fuller, é uma adaptação das obras literárias e personagens criados por Thomas Harris (temos um post muito interessante sobre este tópico aqui mesmo em nosso site). É uma obra feita com muito espero técnico e excelentes interpretações dos atores.

A série é composta de três temporadas, exibidas entre os anos de 2013 e 2015 na televisão americana, em um total de 49 episódios, e possui uma avaliação muito boa no IMDB: 8,5 em uma escala de 10.

Hannibal - Avaliação IMDBNeste post, vamos analisar algumas particularidades da construção do roteiro. Esse exercício servirá para futuras comparações com outras obras audiovisuais e também para identificar padrões, convenções e estruturas utilizadas na elaboração de narrativas nos dias atuais.

Nas próximas linhas, faremos algumas análises comparativas entre os roteiros dos 13 episódios da primeira temporada, considerando as seguintes categorias de análise: 1. Padrões técnicos e estilísticos do roteiro; 2. Relação entre os nomes dos episódios e os acontecimentos; 3. Clichês e convenções narrativos; 4. O termo Cordeiro na obra televisiva e nos livros e 5. Particularidades da construção dos diálogos.

1. Padrões técnicos e estilísticos do roteiro

Formatação de Cena:

Os roteiros seguem um formato padrão da indústria. As cenas são introduzidas por um cabeçalho de cena que indica se a cena é interna (INT.) ou externa (EXT.), o local e a hora do dia (DIA/NOITE). Os cabeçalhos de cena geralmente incluem um número de cena, por vezes seguido por uma letra [7, 39A, 39B, 69A, 69A A].

Formatação de Cena - Hannibal - Episódio 01 x 01

A notação CONTINUED: é frequentemente usada quando uma cena continua na mesma localização após uma pausa ou transição. Informações de produção, como o número da produção e a data de colagem, também estão presentes nos cabeçalhos ou após as transições.

Formatação de cena - Hannibal - Episódio 01 x 13

Instruções de ação e descrição:

As ações dos personagens e as descrições do ambiente são escritas em parágrafos abaixo do cabeçalho de cena. Descrições iniciais de personagens tendem a ser breves, focando em características visuais ou ocupacionais relevantes.

Formatação de cena - Hannibal - Episódio 01 x 07

Parênteses são frequentemente usados dentro das falas ou ações para indicar o tom (then) ou uma ação específica associada ao diálogo (re: terceira mesa posta). A notação (CONT’D) é usada para indicar que um personagem continua a falar após uma ação ou instrução de câmera.

Instruções de ação e descrição Instruções de ação e descrição

Instruções de Câmera e Visualização:

Os roteiros são ricos em instruções de câmera que ditam como a cena deve ser filmada, contribuindo para o estilo visual da série. Termos como CLOSE ON, EXTREME CLOSE UP, CAMERA REVEALS, CAMERA MOVES INTO, POP WIDE, CAMERA PUSHES IN ON, MATCH CUT TO e REVERSE TO REVEAL são usados para direcionar o foco do espectador. A perspectiva é explicitamente indicada por termos como INCLUDE ABIGAIL’S P.O.V., ABIGAIL’S P.O.V., GEORGIA’S P.O.V., OMNISCIENT P.O.V. e WILL’s POV. Elementos visuais recorrentes são destacados no texto, como as aparas de metal, desenhos e arte, preparação de comida, chifres ou o “Homem Cervo” (Man Stag), exames cerebrais/scans e desenhos de relógios distorcidos.

Instruções de Câmera e Visualização

Uso de Som:

Sons específicos são frequentemente capitalizados dentro dos parágrafos de ação para enfatizar sua importância na cena, como THUMP, THUD, CLICK, SHRIEK, PURR, WHIRLING, CYMBAL, AWFUL WET SOUND, SICKENING CRACK e o toque do telefone RINGS. A narração em voz over (V.O.) também é utilizada.

Uso de som

Transições:

Diversos tipos de transições são empregados para mover-se entre cenas. As mais comuns são CUT TO, TIME CUT TO, MATCH CUT TO, HARD CUT TO, POP BACK TO e CUT TO BLACK. O uso de FLASHBACK TO indica um salto temporal para eventos passados.

Transições

Estrutura do Roteiro:

Os roteiros indicam claramente a divisão em atos (TEASER, ACT ONE, ACT TWO, etc.) e o fim de cada um (END OF ACT…). Cenas que foram removidas são marcadas como OMITTED.. CHYRON é usado para indicar texto que aparece na tela, como a localização (F.B.I. Academy, Quantico, Virginia). Notas parentéticas específicas podem ser incluídas para fornecer contexto adicional sobre a cena ou sua relação com eventos anteriores.

Estrutura do Roteiro

Em resumo, os roteiros da primeira temporada de Hannibal, conforme evidenciado pelos trechos, demonstram uma formatação técnica detalhada, um foco significativo nas instruções visuais e de câmera para estabelecer o tom e a perspectiva, e um uso deliberado de sons específicos e transições para criar ritmo e impacto narrativo.

2. Há relação entre os nomes dos episódios e os acontecimentos?

Há uma relação clara entre os nomes dos episódios e os acontecimentos na primeira temporada da série Hannibal. Os títulos de todos os treze episódios da primeira temporada são nomes de pratos franceses, seguindo a ordem de um jantar. Essa estrutura de nomenclatura cria um padrão temático unificador para a temporada.

Embora os trechos dos roteiros fornecidos não expliquem explicitamente a razão pela qual cada título culinário francês específico foi escolhido para o seu respectivo episódio, a progressão dos títulos corresponde amplamente à estrutura narrativa da temporada, como se fosse uma refeição em vários “cursos”:

1. Apéritif:

O primeiro episódio, como um aperitivo, introduz os personagens principais (Will Graham, Jack Crawford, Hannibal Lecter) e o caso inicial que os conecta, o Garret Jacob Hobbs, também conhecido como Shrike. Funciona como a abertura da temporada, “dando o tom”.

2. Amuse-Bouche:

Um pequeno petisco para “divertir a boca” antes da refeição principal. Este episódio segue os eventos do primeiro, aprofundando o impacto do caso Hobbs, introduzindo a possibilidade da filha, Abigail, ter envolvimento, e apresentando um novo assassino com um método peculiar envolvendo fungos e enterros. É um “sabor” adicional e distinto após o prato inicial.

3. Potage:

Sopa, geralmente um curso substancial no início da refeição. Este episódio mergulha profundamente nas consequências do caso Hobbs, focando na recuperação de Abigail Hobbs e sua complexa relação com Will e Hannibal. A narrativa revisita eventos passados (flashes de volta para a noite do ataque na casa dos Hobbs), misturando o presente e o passado, como uma sopa com vários ingredientes.

4. Ceuf:

Ovo, um ingrediente base ou prato de entrada. Este episódio introduz um novo caso envolvendo famílias sequestradas e transformadas em uma unidade sob uma figura materna, explorando a ideia de criação ou formação de uma nova “família”. Também aborda os problemas psicológicos de Will. Pode-se interpretar como a base de novas ideias (o “ovo” do conceito de família distorcida) ou o desenvolvimento de um novo “ingrediente” na mente de Will.

5. Coquilles:

Conchas (como em vieiras, Coquilles Saint-Jacques). O caso apresentado neste episódio envolve vítimas transformadas em “anjos” com as costas abertas como asas. Isso pode ser ligado à ideia de remover a “concha” ou a superfície, expondo o interior, ou a forma das vítimas assemelhando-se a conchas ou esculturas. O episódio também toca na doença da esposa de Jack, Bella Crawford.

6. Entrée:

Prato principal. Este episódio apresenta Abel Gideon e o mistério em torno do Chesapeake Ripper. O Ripper é uma figura central na mitologia da série, servindo como um “prato principal” no desenvolvimento da trama criminal.

7. Sorbet:

Sorbete, um limpador de paladar servido entre os pratos. Este episódio apresenta um caso envolvendo um assassino que lida com órgãos humanos, e também explora a dinâmica entre Hannibal, Franklyn e Tobias. Pode ser visto como um ligeiro desvio ou uma “limpeza” do foco principal antes de retornar aos temas mais pesados.

8. Fromage:

Queijo, servido após o prato principal. Este episódio foca na relação entre Hannibal e Tobias, culminando em um confronto violento. Representa um “curso” distinto e intenso após o “Entrée”.

9. Trou Normand:

Um “buraco normando”, tipicamente uma dose de álcool (como Calvados) para ajudar na digestão entre pratos pesados. Este episódio utiliza flashbacks explícitos de eventos anteriores, particularmente do episódio “Potage”, revisitando o trauma de Abigail e explorando o impacto persistente desses eventos em Will. Serve para revisitar e processar acontecimentos passados, atuando como uma espécie de “limpeza” ou transição antes dos eventos finais da temporada.

10. Buffet Froid:

Buffet frio, uma variedade de pratos preparados. Este episódio destaca a deterioração mental de Will, suas alucinações e sonambulismo. O título pode ser interpretado como uma coleção de sintomas “frios” ou perturbadores que Will está experimentando, ou uma variedade de desafios psicológicos que ele enfrenta.

11. Rôti:

Assado, outro prato principal. Este episódio continua a história de Abel Gideon, trazendo de volta um elemento importante do “Entrée”, reforçando-o como um tema central da temporada.

12. Relevés:

Um curso servido entre a entrada e o assado, geralmente substancial. Este episódio aprofunda a investigação, especialmente a suspeita crescente em relação a Will e o descobrimento do envolvimento de Abigail com Hannibal. É um “curso” crucial que adiciona peso e complexidade à narrativa antes do final.

13. Savoureux:

Saboroso, que se refere a algo apetitoso, ou um prato salgado servido no final da refeição. Este é o episódio final da temporada, culminando no colapso de Will e sua prisão. O título pode ser irônico, dado o desenrolar sombrio dos eventos, ou pode refletir a perspectiva de Hannibal sobre o resultado de suas manipulações.

Em suma, os trechos dos roteiros indicam que os títulos dos episódios seguem uma sequência culinária francesa. Embora os roteiros não detalhem explicitamente a conexão temática de cada título, a ordem dos episódios no roteiro reflete a progressão de um jantar, e os principais eventos descritos nos trechos para cada episódio parecem se alinhar metaforicamente com a função ou o tipo de prato que o título representa na sequência de uma refeição elaborada.

3. Clichês e convenções narrativos

1. O Protagonista Brilhante, Assombrado e Psicologicamente Fragilizado:

Will Graham encaixa-se perfeitamente neste arquétipo comum em dramas policiais e thrillers psicológicos. Ele é descrito como um homem “assombrado” com um foco ingênuo. A sua “dádiva” de empatia extrema, que lhe permite “reconstruir o pensamento de um assassino” e ver através dos olhos do criminoso, é fundamental para a resolução dos casos, mas ao mesmo tempo é a causa da sua deterioração mental. A série explora o custo psicológico deste “dom”, uma convenção frequente onde o talento do herói é também a sua maldição. A sua luta com alucinações, sonambulismo e perda de tempo é um desenvolvimento clássico do “detetive à beira do abismo”.

2. O Superior Cético mas Dependente:

Jack Crawford representa o chefe do FBI experiente e focado em resultados. Ele depende da habilidade única de Will mas por vezes demonstra impaciência ou ceticismo em relação ao seu estado mental. Apesar das suas preocupações, ele continua a pressionar Will a usar o seu dom (“Eu sei o que acontece quando você não olha”), o que é uma dinâmica comum onde o chefe pragmático impulsiona o protagonista talentoso, mesmo que isso o prejudique.

3. O Psiquiatra Consultor com um Segredo Sombrio:

Hannibal Lecter, na superfície, é o especialista refinado chamado para ajudar a perfilar assassinos. A convenção aqui é a do “lobo em pele de cordeiro”. Os trechos mostram-no a ser consultado por Jack Crawford sobre o perfil de Will e a envolver-se nos casos.

No entanto, o seu verdadeiro interesse em Will, a sua manipulação de outros (como Franklyn ou Abigail) e as descrições de si mesmo (“Eu tenho nojo da mediocridade humana”, “Não tenho interesse em entender ovelhas”), juntamente com a sua preferência pelo que é “raro” e o seu papel no caso Hobbs, sugerem o seu envolvimento oculto e a sua natureza predatória, um elemento central derivado da sua origem literária e que se tornou uma convenção forte no gênero de serial killers.

4. A Equipe Forense / Consultores de Apoio:

Beverly Katz, Brian Zeller e Jimmy Price fornecem a experiência científica e forense necessária para a investigação, uma convenção padrão em séries procedurais. Alana Bloom, como psiquiatra, oferece uma perspetiva diferente, mais focada no bem-estar psicológico e na ética, muitas vezes atuando como uma voz da razão ou preocupação face às abordagens mais agressivas de Jack ou Hannibal. Estes personagens preenchem os papéis convencionais da equipe de apoio ao protagonista principal.

5. A Jornalista Sensacionalista e Invasiva:

Freddie Lounds representa o estereótipo da repórter de tabloides ou “criminal justice journalism”. Ela procura a história chocante (“um furo”), frequentemente com métodos antiéticos, e a sua presença cria complicações ou expõe informações de forma irresponsável (como a foto de Elise Nichols ou o artigo “TAKES ONE TO KNOW ONE”). Esta personagem é uma convenção para adicionar tensão e criticar a exploração mediática do crime.

6. A Vítima / Sobrevivente Traumatizada:

Abigail Hobbs é o exemplo clássico da jovem vítima que sobrevive ao ataque do pai serial killer. A sua luta para lidar com o trauma, a perceção pública e a sua própria potencial implicação (ou a de Hannibal) nos crimes é uma linha narrativa comum que explora as consequências do crime para além da investigação.

7. A Estrutura Procedural com Casos da Semana:

Vários episódios focam-se em investigações criminais distintas (o Garret Jacob Hobbs/Shrike, o “Farmer”, as famílias sequestradas/”Egg”, o “Angel Maker”, o Chesapeake Ripper, etc.), o que é uma convenção do formato de série policial. No entanto, Hannibal tece um fio narrativo mais longo e focado nos personagens principais (especialmente Will e Hannibal) através destes casos, usando-os para impulsionar o desenvolvimento psicológico e a trama principal.

8. Flashbacks e Pontos de Vista Subjetivos:

O uso explícito de FLASHBACK TO e as instruções P.O.V. são convenções técnicas de roteiro e cinematográficas para mostrar eventos passados, a perspectiva do personagem, ou o estado mental alterado (especialmente Will), mergulhando na subjetividade.

9. O Foco no “Porquê” e na Psicologia:

A série vai além da simples identificação do criminoso, dedicando tempo a explorar as motivações e a psicologia dos assassinos. As sessões de terapia (de Franklyn, Bedelia, Will) são usadas para analisar as mentes, o que é uma convenção central do gênero psicológico, embora a relação terapêutica entre Hannibal e Will subverta essa convenção de formas perigosas.

10. As Pistas Visuais Grotescas:

A descrição das cenas de crime com detalhes perturbadores (vítimas empaladas, corpos mutilados, sons viscerais) é uma convenção em thrillers e horror que visa chocar e imergir o espectador na realidade horrível dos crimes.

11. A Deterioração da Realidade do Protagonista:

As alucinações de Will, como os relógios distorcidos e o “Homem Cervo”, são representações visuais convencionais do colapso psicológico ou da doença.

Em resumo, a primeira temporada de Hannibal, conforme revelado pelos trechos, utiliza uma série de clichês e convenções de personagens e enredo comuns aos gêneros de drama policial e thriller psicológico. No entanto, a profundidade com que explora a psicologia dos personagens, o foco na relação manipuladora entre Will e Hannibal e a estilização visual e narrativa elevam estes elementos para além do mero clichê, criando uma experiência distinta e intensa.

4. Os cordeiros

Nos trechos de roteiro, o termo “cordeiro” surge diretamente associado à perspcetiva de Hannibal Lecter e à sua forma de ver o mundo e as pessoas. Ele expressa um desinteresse fundamental em compreender o que considera comum ou medíocre. Quando Jack Crawford está a discutir Will Graham com ele e menciona os “aprendizes” e “companheiros eruditos” no FBI, Hannibal retorque:

• HANNIBAL Um leigo? Tantos companheiros eruditos nos corredores da Ciência Comportamental do F.B.I. e você se considera um leigo?

• JACK CRAWFORD Considero, quando estou na sua companhia, Doutor. Gostaria que você me ajudasse com um perfil psicológico.

• OFF Interesse aguçado de Hannibal…

Pouco depois, ao observar Will, Hannibal afirma: “Não tenho interesse em entender cordeiros”. Ele contrasta a sua própria natureza de observador com a de Will, que “imagina o que você vê e aprende, toca em todo o resto da sua mente” e cuja “dádiva” é “pura empatia”. Hannibal não consegue “desligar” a sua observação, assim como Will não consegue desligar a sua empatia, mas o objeto da sua observação é diferente. Enquanto Will se imerge na mente dos outros (inclusive a dos assassinos), Hannibal descarta aqueles que considera “cordeiros”.

Essa distinção é reforçada mais adiante, em uma conversa com Dr. Chilton sobre Dr. Gideon, um psicopata:

• HANNIBAL Dr. Gideon é um psicopata. Psicopatas são narcisistas. Raramente duvidam de quem são.
• DR. CHILTON Tentei apelar para o narcisismo dele.
• HANNIBAL Convencendo-o de que ele era o Estripador de Chesapeake.
• Dr. Chilton percebe que se meteu em encrencas.
• DR. CHILTON Se ao menos eu tivesse sido mais curioso sobre a mente comum.
• HANNIBAL Não tenho interesse em entender cordeiros. Apenas em comê-los.

Esta fala é particularmente reveladora. Ela não apenas reitera o desinteresse de Hannibal pelos “cordeiros” (a mente comum), mas também associa explicitamente essa falta de interesse ao seu comportamento predatório – “Apenas em comê-los”. Para Hannibal, a maioria das pessoas não vale o esforço de compreensão; elas são simplesmente recursos a serem utilizados ou consumidos.

O conceito de vítimas sendo vistas como animais comuns também aparece noutra conversa. Will Graham descreve as vítimas do Estripador de Chesapeake como sendo tratadas como “pigs” (porcos):

• WILL GRAHAM Uso o termo Sounders porque se refere a um pequeno grupo de porcos. É assim que ele vê as suas vítimas. Não como pessoas, não como presas. Porcos.

Embora a palavra usada aqui seja “porcos” e não “cordeiros”, a ideia subjacente é semelhante: o assassino desumaniza as suas vítimas, reduzindo-as a animais comuns, desprovidos de individualidade ou valor intrínseco, tornando-os adequados para abate ou consumo.

A metáfora da seleção de animais para consumo de alta qualidade é explorada na conversa entre Hannibal e Dr. Sutcliffe sobre presunto Ibérico. Eles discutem como apenas “poucos porcos são selecionados a cada ano” para se tornarem presunto Ibérico de alta qualidade. Hannibal pergunta se esse porco é “superior a qualquer outro porco, ou é simplesmente uma questão de reputação”.

Dr. Sutcliffe sugere que a crença do “carnívoro” (meat-eater) determina o valor, o que é um caso de “psicologia anulando a neurologia” ou “reputação sendo rei”. Sutcliffe então aplica essa metáfora a Will Graham, perguntando a Hannibal como ele escolheu seu “porco”. Hannibal descreve Will como “rarefied” (raro) e possuidor de “pura empatia”. Isto sugere que Will, aos olhos de Hannibal, está na categoria dos “selecionados”, os “raros”, aqueles que valem a pena “compreender” ou, na sua lógica distorcida, manipular e, talvez, saborear (metaforicamente ou não) – em contraste com as “ovelhas” comuns.

Conexão com Thomas Harris:

A série Hannibal é baseada nos personagens criados por Thomas Harris. A dicotomia entre o predador (Hannibal) e as vítimas (os “cordeiros”) é um tema central na obra de Harris, especialmente em O Silêncio dos Inocentes (The Silence of the Lambs). No livro e no filme, o título refere-se ao desejo de Clarice Starling de silenciar os gritos dos cordeiros a serem abatidos (uma referência a um trauma de infância), o que simboliza a sua busca por salvar vítimas inocentes.

Hannibal, por contraste, não só vê as vítimas como “cordeiros” ou “ovelhas” a serem abatidos, mas também sente um profundo desprezo pela vulgaridade e mediocridade da maioria da humanidade. Ele busca o refinamento, a inteligência e o “rarefied”, encontrando aqueles que considera medíocres (as “ovelhas”) insípidos e dignos de serem consumidos (literalmente, no seu caso) ou simplesmente ignorados.

Portanto, o uso do termo “cordeiro” e a atitude de Hannibal em relação a eles nos roteiros da série estão diretamente alinhados com a caraterização do personagem criada por Thomas Harris. Os trechos demonstram que a série incorpora este aspecto fundamental da sua personalidade, onde ele se posiciona acima da humanidade comum, tratando-os com desdém e como meros objetos de prazer ou descarte, em contraste com os indivíduos “raros” como Will Graham, que despertam o seu interesse e manipulação.

5. Padrões de diálogos

Em muitos momentos da narrativa é possível notar um padrão de padrão de conversa entre paciente e terapeuta. E até mesmo entre diferentes personagens e diferentes situações.

Este padrão é intrínseco à narrativa de Hannibal por várias razões, muitas delas diretamente ligadas aos personagens centrais e aos temas explorados:

1. A Natureza das Personagens Principais:

Várias personagens chave são psiquiatras ou trabalham na área de ciências comportamentais e perfis criminais.

  • Hannibal Lecter é um psiquiatra altamente qualificado, que ainda atende pacientes (Franklyn, Bella Crawford) e atua como consultor psiquiátrico para o FBI, especialmente em relação a Will Graham. Ele também tem a sua própria psiquiatra, Bedelia Du Maurier.
  • Alana Bloom é uma psiquiatra que trabalha com o FBI e também atende pacientes (Abigail Hobbs) e aconselha Will.
  • Dr. Chilton é o diretor de um hospital psiquiátrico para criminosos insanos e está constantemente analisando os seus “pacientes” (como Abel Gideon) e colegas (Will Graham).
  • Will Graham, embora não seja um psiquiatra, tem um “dom” de empatia extrema que lhe permite imergir na mente de criminosos para os perfilar. Esta imersão é, por si só, um processo psicológico profundo que se assemelha a uma forma de autoanálise ou análise da mente do outro. Ele é explicitamente encaminhado para avaliação psiquiátrica com Hannibal.

2. O Foco Narrativo na Psicologia e na Mente:

A série não se limita a investigar crimes; ela mergulha na psicologia dos criminosos, das vítimas e dos investigadores.

  • Will Graham está constantemente a tentar “reconstruir o pensamento de um assassino”, um processo que muitas vezes envolve a visualização e a imersão na mente do criminoso.
  • As conversas entre personagens frequentemente exploram motivações, estados mentais, traumas, e a natureza da sanidade vs. doença mental.

3. As Dinâmicas Interpessoais Modeladas pela Terapia:

  • Will e Hannibal: A relação central é oficialmente a de consultor/perfilador, mas rapidamente se transforma numa dinâmica de “conversas” que funcionam como terapia para Will. Hannibal usa estas sessões para analisar Will, manipular a sua perceção da realidade e da sua própria identidade. A linha sobre terem um “nível superior de intimidade do que uma relação comum médico-paciente”, quase como se tivessem “uma filha juntos” (referindo-se a Abigail Hobbs), sublinha a complexidade que transcende uma simples relação profissional, embora a linguagem e a estrutura da terapia permaneçam.
  • Hannibal e Bedelia: A relação entre Hannibal e a sua psiquiatra, Bedelia, é explicitamente terapêutica. No entanto, mesmo nesta relação, Bedelia inverte a dinâmica ao analisar Hannibal, descrevendo-o com termos como “pessoa que usa um fato bem-feito” ou “véu humano”. Hannibal usa estas sessões para explorar os seus próprios pensamentos e sentimentos, especialmente em relação a Will.

4. Outras Interações:

  • As conversas de Jack Crawford com Hannibal e com Alana Bloom frequentemente envolvem pedir perfis psicológicos, avaliações, ou discutir o estado mental de Will. Mesmo quando discute a doença da sua esposa Bella com Hannibal, a confidencialidade médico-paciente surge como barreira.
  • A interação de Freddie Lounds com Hannibal começa como uma entrevista, mas Hannibal rapidamente a conduz como se fosse uma paciente, analisando-a e exercendo controle. A própria Freddie descreve a sua conversa com Hannibal usando linguagem terapêutica.
  • A conversa entre Freddie Lounds e Abigail Hobbs é supostamente jornalística, mas Freddie usa linguagem que soa como aconselhamento psicológico (“ajudar a preencher os espaços em branco”, “esculpir um caminho… para sobreviver”).
  • Will e Alana, mesmo em momentos pessoais, utilizam termos psicológicos para descrever a si mesmos e à sua relação (“analisando,” “patologia,” “atravessando a fronteira do estado”).
  • Até mesmo no contexto criminal e médico, a linguagem da análise psicológica é presente. Dr. Chilton analisa Will. Will e outros discutem Gideon em termos de psicopatia. Dr. Sutcliffe discute a condição de Will com Hannibal e utiliza metáforas que ecoam a visão predatória de Hannibal. Gideon, ao torturar Chilton, refere-se a entrar na sua mente e usar linguagem médica.
  • Este padrão de diálogo não é acidental. Ele serve para:Sublinhar o tema central da psicologia: A série está profundamente interessada no funcionamento da mente humana, tanto na sua beleza complexa (Will) quanto na sua escuridão (Hannibal, os assassinos da semana).Criar tensão e ambiguidade: As conversas terapêuticas podem ser genuínas buscas por compreensão, mas também terrenos para manipulação e jogo psicológico, especialmente com Hannibal. As linhas entre cura e dano são constantemente esbatidas.

    Desenvolver personagens através da introspeção (forçada ou voluntária): As personagens são frequentemente levadas a verbalizar os seus pensamentos, medos e motivações, revelando a sua psicologia ao espectador e a outras personagens na narrativa.

    Refletir a influência de Hannibal: Como psiquiatra e mestre manipulador, Hannibal impõe o seu quadro de referência psicológico e terapêutico a muitas das interações que o rodeiam, quer ele esteja ativamente a participar nelas ou apenas a observá-las.

Em suma, a estrutura e a linguagem das conversas nos roteiros frequentemente imitam a dinâmica entre paciente e terapeuta, refletindo o foco da série na psicologia, as profissões das personagens e as complexas, muitas vezes manipuladoras, relações interpessoais que definem a narrativa.

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