A década de 1950 foi um período marcado pelos impactos e consequências de duas grandes Guerras Mundiais, terminadas anos antes e pelo cenário de reconstrução da Europa (estimulado pelo Plano Marshall, anos 1948-1952).
Nos Estados Unidos, em particular, eclodiam Movimentos dos Direitos Civis, capitaneados por personalidades como Rosa Parks e Martin Luther King Jr (1955-1956), indicando novos horizontes de conscientização frente aos ambientes hostis e deletérios vividos pela sociedade da época.
Nesse ambiente de auspícios e desafios, motivado por um conjunto de inovações científicas e tecnológicas (como a descoberta da estrutura do DNA, em 1953, por James Watson e Francis Crick), foi lançado no mercado mundial um medicamento que iria impactar negativamente a vida de aproximadamente 20 mil pessoas em todo mundo, de uma forma triste e cruel.
Tratava-se da Amida Nftálica do Ácido Glutâmico ( C13H10N2O4), também conhecida como talidomida, uma substância desenvolvida em 1954 pela empresa farmacêutica Chemie Grünenthal, na então Alemanha Ocidental, com o objetivo de tratar os sintomas de enjoo matinal.
No início, tudo caminhava segundo o roteiro idealizado pela empresa. Tanto que, anos depois, em 1957, o medicamento foi lançado em terras germânicas com o nome comercial de Contergan, sem necessidade de prescrição médica (uma condição que iria potencializar seu impacto deletério nos anos vindouros).
Em pouco tempo, a talidomida passou a ser comercializada em muitos outros países, e sua ação anti-inflamatória e antiemética o credenciou a ser indicado a pacientes grávidas, a fim de aliviar os clássicos sintomas de enjoo matinal.
A Síndrome da Talidomida
Infelizmente, as consequências de tais ações foram teratológicas e, pouco tempo depois, o uso da talidomida durante a gravidez foi associado a defeitos congênitos graves em bebês. Cada vez mais apareciam evidências de que crianças nascidas de mães que ingeriram talidomida durante a gestação apresentavam malformações em membros, incluindo braços e pernas mais curtos ou ausentes, deficiências nos ossos, orelhas malformadas e problemas internos, como danos aos órgãos.
O escândalo da talidomida levou à retirada do medicamento do mercado em muitos países e colocou em pauta a importância de testes exaustivos de segurança de medicamentos em mulheres grávidas.
Vale ressaltar, porém que, anos após sua retirada do mercado, pesquisadores encontram novas aplicações para essa controversa droga, especialmente no tratamento de condições como Lúpus, AIDS, câncer e leucemia.
E no Brasil?
Estima-se que cerca de 800 a 1.000 crianças tenham sido afetadas pela síndrome da talidomida no país. Esses números refletem os casos identificados após o reconhecimento dos efeitos teratogênicos do medicamento no início dos anos 1960.
Em 1982, a Lei 7.070 estabeleceu uma pensão especial vitalícia, considerando o grau de dificuldade enfrentado pelos portadores da síndrome em áreas como trabalho, deambulação, higiene e alimentação.
No entanto, o passar dos anos revelou um novo desafio: o envelhecimento precoce das pessoas afetadas.
Com o objetivo de abordar essas preocupações e promover a justiça, em 2018, o então presidente Michel Temer sancionou a Lei 13.638. Esta legislação trouxe um aumento significativo na pensão especial para os portadores da Síndrome da Talidomida. O valor de referência da pensão subiu de R$ 426,53 para R$ 1.000, considerando pontos indicadores do grau de dependência.
A avaliação do grau de dependência levou em conta quatro itens essenciais: alimentação, higiene, locomoção e incapacidade para o trabalho, atribuindo pontos em uma escala de 1 a 8. A revisão visa acompanhar as crescentes demandas financeiras associadas ao envelhecimento das vítimas, como custos com profissionais da saúde, cirurgias e medicamentos.
Essa atualização na legislação, em vigor desde 2019, representa um passo importante para garantir uma qualidade de vida mais digna e justa para as pessoas que enfrentam os desafios da Síndrome da Talidomida.
Hoje, na data de publicação deste artigo, cerca de 400 pessoas no Brasil recebem compensação financeira do governo devido à síndrome da talidomida. Esse número reflete as vítimas reconhecidas oficialmente e que recebem assistência contínua, tanto financeira quanto médica.
A Síndrome da talidomida é hereditária?
Não, a síndrome da talidomida não é hereditária. Os defeitos congênitos causados pela talidomida resultam da exposição direta do feto ao medicamento durante a gravidez, não de mutações genéticas que possam ser passadas para as gerações futuras.
Natureza dos Defeitos Congênitos
- Teratogenicidade: A talidomida é um teratógeno, o que significa que causa malformações congênitas ao interferir no desenvolvimento normal do embrião quando tomada pela mãe durante a gestação. Essas malformações não alteram o material genético (DNA) dos indivíduos afetados.
Genética vs. Exposição
- Alterações Não Genéticas: As malformações causadas pela talidomida são devido à interferência química direta durante o desenvolvimento fetal e não resultam de mutações que podem ser transmitidas geneticamente.
- Descendentes: Os filhos de pessoas afetadas pela talidomida não estão em risco aumentado de herdar as malformações, a menos que eles próprios sejam expostos à talidomida durante o desenvolvimento fetal.
Considerações Adicionais
- Cuidados Médicos: Embora as malformações não sejam hereditárias, é importante que os descendentes de pessoas afetadas pela talidomida sejam informados sobre a história médica familiar para quaisquer cuidados especiais que possam ser necessários, independentemente da causa.
Breve histórico:
Desenvolvimento e Comercialização
- 1954: A talidomida foi sintetizada pela primeira vez pela empresa farmacêutica alemã Chemie Grünenthal. Inicialmente, foi desenvolvida como um sedativo e calmante.
- 1957: A talidomida foi lançada no mercado alemão como um medicamento sem necessidade de prescrição médica, com o nome comercial de Contergan. Foi promovida como um sedativo seguro e eficaz, também usado para tratar enjoos matinais em gestantes.
Expansão e Uso
- Final dos anos 1950: A talidomida foi rapidamente adotada em vários países ao redor do mundo, sendo comercializada sob diversos nomes comerciais.
Surgimento dos Problemas
- Final dos anos 1950 – início dos anos 1960: Médicos começaram a notar um aumento de casos de malformações congênitas graves, especialmente focomelia (ausência ou encurtamento de membros), em bebês cujas mães haviam tomado talidomida durante a gravidez.
Reconhecimento da Ligação e Retirada do Mercado
- 1961: O médico australiano Dr. William McBride e o médico alemão Dr. Widukind Lenz identificaram independentemente a ligação entre o uso de talidomida por gestantes e as malformações congênitas em seus filhos. Em novembro de 1961, a Chemie Grünenthal retirou a talidomida do mercado na Alemanha.
- 1962: Outros países seguiram o exemplo, e a talidomida foi retirada do mercado mundial. Este evento levou a uma reformulação significativa das regulamentações de medicamentos e ao estabelecimento de sistemas de monitoramento de segurança mais rigorosos em muitos países.
Consequências e Compensações
- Década de 1960 em diante: As vítimas da talidomida e suas famílias enfrentaram enormes desafios físicos, emocionais e financeiros. Diversos processos judiciais foram movidos contra a Chemie Grünenthal e outras empresas que distribuíram a droga. Em muitos países, as vítimas receberam compensações financeiras, embora o valor e a adequação dessas compensações tenham variado.
Reutilização Controlada
- Décadas de 1980 e 1990: Descobriu-se que a talidomida tinha propriedades terapêuticas para tratar condições como a lepra e certos tipos de câncer (especialmente o mieloma múltiplo). Contudo, seu uso foi rigidamente controlado para evitar a exposição de mulheres grávidas.
Atualidade
- Hoje: A talidomida ainda é usada em alguns tratamentos médicos específicos, mas sob estritas condições de controle e programas de prevenção de gravidez. O impacto histórico da talidomida levou a uma maior conscientização sobre a importância da segurança farmacêutica e da vigilância de medicamentos.
Referências:
Chemie Grünenthal
ABPST – Associação Brasileira de Portadores de Deficiência por Talidomida
Lei 7.070
Lei 13.638
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