A narrativa do Êxodo ressalta que Javé, em diferentes momentos “endureceu o coração de Faraó”, estimulando-o a dificultar a liberação dos israelitas do regime de escravidão em que viviam no Egito. Tal narrativa é um dos relatos mais marcantes da tradição judaico-cristã, que tem em Moisés um personagem fundamental. Mas qual seria a razão de Javé endurecer o coração de Faraó, se o objetivo era libertar o povo de Israel de sua escravidão no Egito? Não seria mais simples se Deus enternecesse o coração de Faraó? Isso não pouparia milhares de vidas, derramamento de sangue de inocentes, dores e sofrimento?
Vamos tentar entender um pouco deste assunto, a partir de uma análise exegética e histórica, considerando o contexto do Antigo Oriente Próximo e as interpretações de historiadores e estudiosos das Escrituras.
No relato do Êxodo, encontramos três formas distintas de endurecimento do coração de Faraó:
(hizzeq lebô) – Êx 8:15, 8:32, 9:34.
(wayyêḥezaq leb parʿô) – Êx 7:13, 7:22, 9:35.
(wa’ani ’aqshê leb par‘ô) – Êx 4:21, 7:3, 9:12, 10:1, 10:20, 10:27, 11:10, 14:8.
O endurecimento ocorre progressivamente ao longo da narrativa das pragas, sugerindo um desenvolvimento teológico intencional.
A questão central do endurecimento do coração de Faraó levanta um dilema teológico: se Deus deseja libertar os israelitas, por que Ele próprio dificultaria a decisão do governante egípcio? Algumas abordagens exegéticas tentam responder a essa questão.
John H. Walton (Ancient Near Eastern Thought and the Old Testament, 2006) argumenta que, no pensamento do Antigo Oriente Próximo, o endurecimento do coração pode ser entendido como um ato de retribuição divina. Deus permite que Faraó siga seu próprio caminho obstinado, reforçando suas escolhas anteriores. Essa leitura está alinhada com Romanos 1:24, onde Deus “entrega” as pessoas aos seus próprios desejos.
Walter Brueggemann (Theology of the Old Testament, 1997) sugere que a teologia do Êxodo não é apenas sobre a libertação de Israel, mas sobre a supremacia de Javé sobre os deuses egípcios. Ao endurecer o coração de Faraó, Deus cria um palco onde pode demonstrar Seu poder através das pragas. Esse argumento se relaciona com Êxodo 12:12, onde Javé declara estar julgando “todos os deuses do Egito”.
Nahum Sarna (Exploring Exodus, 1986) aponta que, nos primeiros estágios da narrativa, o próprio Faraó endurece seu coração. Somente após reiteradas recusas de libertar Israel, Deus começa a intervir no endurecimento. Isso indica que o endurecimento divino não é arbitrário, mas uma resposta à obstinação inicial de Faraó.
James Hoffmeier (Israel in Egypt, 1999) relaciona o endurecimento do coração ao conceito egípcio de ib (coração) e maat (ordem cósmica). No Egito antigo, o coração era associado à sabedoria e à moralidade. No julgamento dos mortos, segundo o Livro dos Mortos, o coração do falecido era pesado contra a pena da deusa Maat. Um coração endurecido simbolizava um governante inflexível e resistente à vontade divina. Nesse sentido, o endurecimento do coração de Faraó indica que ele rejeitou a justiça divina e se opôs à ordem cósmica que Javé estava impondo.
O faraó do Egito era considerado uma divindade viva, filho de Rá. Como tal, ele não podia demonstrar fraqueza ou ceder a pressões externas. Kenneth Kitchen (On the Reliability of the Old Testament, 2003) argumenta que a resistência de Faraó também pode ser explicada pelo seu papel como governante absoluto, cuja autoridade não podia ser desafiada publicamente sem prejuízo ao seu status divino.
Diante dessas abordagens, podemos sugerir algumas razões teológicas e narrativas para o endurecimento do coração de Faraó:
Em tese, a narrativa do endurecimento do coração de Faraó no Êxodo não pode ser lida de maneira simplista. Em vez de representar um Deus arbitrário, ela reflete uma complexa interação entre livre-arbítrio, julgamento divino e a necessidade de demonstrar a superioridade de Javé sobre os deuses egípcios. A interpretação exegética e histórica sugere que essa linguagem foi usada para destacar o conflito entre o poder divino e a resistência humana, um tema que ressoa em toda a Bíblia.
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